Pular para o conteúdo principal

Mulher

Ser o que não se pode ser
avessa ao existir
qual buraco que engole os passos
qual vácuo, fissura
que não cabe em si.
Coser uma torneira no corpo
só pra desaguar um poder frouxo,
fingir um pouco de prazer com o outro
só pra sustentar um lugar de sentir.

A onipresença do falo
conjugou ao corpo não fálico
um lugar de anti-verbo
e a palavra mulher
fez-se vento
como o próprio pensamento
expatriado
não conseguiu compor-se em corpo.


O poder despojado do corpo
fez nascer fluidez visceral e inquietante
nos seios, vestidos e sentimentos
e a mulher fez-se dançante, errante...
no bravio mar de inconstância
num amar tempestuoso...
E toda falta de essência
conduz-lhe a dançar
qualquer música que se encarregue de tanger
um molde de existência.

Redundante é o vazio do ventre
completude é o germinar do feto
é o aceitar a falta
é o afaga a dor do parto
o partir do epitélio.
Mas há seres oblíquos
que abstêm-se de crias
de faltas,
de nexo...
Longínquos desgostos...

Renunciar a semente
jazer briofitamente
não ser mulher
existir na cadência de um corpo
feminino falocrático
despido de velcro
volver-se no mistério do
terceiro sexo.

Gerar um vazio mais complexo
engolidor
professor
de gozos mortíferos.

(Raquel Amarante)

Pintura: Mulher nua lendo, Robert Delaunay, 1915.

Comentários

  1. lindíssimo Raquel...
    intenso..
    beijos querida.

    ResponderExcluir
  2. Nossa. Li três vezes.

    E esta parte?

    "Tal qual apega o significado ao significante
    o poder depreendido do corpo
    fez nascer fluidez visceral e inquietante
    nos seios, vestidos e sentimentos
    e a mulher fez-se dançante, errante...
    no bravio mar de inconstância
    num amar tempestuoso...
    E toda falta de essência
    conduz-lhe a dançar
    qualquer música que se encarregue de tanger
    um molde de existência."

    Nela fiquei um tempo.

    Muito bom, Raquel. Legal conhecer este espaço.

    Beijinhos.

    ResponderExcluir
  3. Oh, Lacan, Lacan, leitura que não conheço, como poderei conceber a mulher forjada da costela do seu pensamento?
    Raquel, aqui então te evocamos pra que possa nos oferecer uma suma de Lacan, contamos com isso, e mais precisamente com você.

    Ah, mulher, mulher... lacaniana...
    Será completude ao fardo orgasmo do prepotente reino fálico?
    Será plenitude, comunhão de significado e significante, quando recebe a graça emanada por um simples zelo de caridade do nobre e absoluto poder fálico?

    Retém-me, entretanto, mais a atenção, com um ar de indiscreta estranheza, as três últimas estrofes... O que é, será, e o que se fazer da mulher cujo redundante vazio do ventre não germinar?
    Ah, estorvo vazio... Oh, pária inútil, que nega a natureza do seu útero, gerar os filhos falos, do falocrático lar!
    Ah, bem que aquelas três derradeiras estrofes lembravam as convictas solteironas.

    ResponderExcluir
  4. Valeu Ingrid, Ígor e querido Dewïzqe... Muito bem vinda Rebeca!!!!

    ResponderExcluir
  5. Amiga.... Sempre com reflexões complexíssimas que me fazem refletir o outro lado do texto... O que chega ao leitor... E me interessa sempre o que lhe chega, pois sua leitura é de uma profundidade, de uma percepção para além do texto, de uma alma analítica-lacaniana...
    Ah se eu pudesse lhe dizer o que dizem as três estrofes... Quintana na epígrafe do blog diz bem das minhas intenções frustradas.. Minha línguagem é míope...
    Como diz nossa querida Lispector.. "Entender é sempre limitado."
    Mas é sempre saboroso degustar o suposto saber do outro lado...
    Sua apropriação desta minha escrita tosca é um verdadeiro encontro de inconscientes...

    "A FLOR É SEM PORQUÊ, FLORESCE POR FLORESCER""
    A flor é sem porquê / Floresce por florescer / Não olha para si mesma / Não pergunta se a olham / E sorri para o universo / A rosa é sem porquê...
    (Angelus Silesius)

    ResponderExcluir
  6. Poetisa... também acolho as suas palavras e sobre elas não posso deixar de concordar com o seu pensamento. Pois o texto, em suas diversas expressões, é incrivelmente rico em sua miríade de interpretações e sentidos, e para as quais cada leitor tem a sua subjetiva rosa-dos-ventos. "A palavra publicada não pertence mais ao seu autor", a esse respeito já dizia o poeta.
    Deixemos-nos, então, que o entendimento se realize conforme a versa a epígrafe do blog, "a gente pensa uma coisa..." batendo cabeças, cabeças se unirão e construirão babéis inteligíveis... rsrs.

    "Ah se eu pudesse lhe dizer o que dizem as três estrofes..."
    Ah, poetisa enigmática, como essa revelação clara, vaga, incofessada, concluída em misteriosas reticências, crava em meu pensamento uma saborosa curiosidade.

    "A flor é sem porquê
    floresce por florescer..."
    mel que adoça nosso amanhecer.

    Obrigado pela flor...

    ResponderExcluir
  7. Intenso, complexo e lindo! Esta mulher tem muito de todas as mulheres que vivem um relacionamento.Vestem-se com máscaras e seguem vida afora a procura de sentimentos verdadeiros.
    Tenha um domingo feliz.Bjs Eloah

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Você pode fazer comentários mesmo sem ter uma conta do Google ou sem ter um site. Basta clicar em Nome/URL, colocar seu nome e comentar. Sejam bem vindos! ;)

Postagens mais visitadas deste blog

Será se...

Uma formiga agonizante na pia remexe as pernas como se pedisse ajuda. Luta para viver. Luta para escapar. Como se desculpar com uma formiga que escolhe um caminho que ela nunca imaginaria que pudesse lhe matar? O que leva essa distraída, essa louca dessa formiga a se aventurar num braço humano assim?! Seria pra fugir da água? Seria para fugir de outro tipo de morte? Perdoe-me formiga, quando dei por mim já lhe tinha esfregado minha mão direita sem jamais imaginar que lhe atingiria os órgãos vitais. Não, não me sinto alguém maior, superior, um deus capaz de recortar seu ciclo de vida. Na verdade, sinto uma fatalidade tão profunda que parece que era minha vida ali extraída. Na verdade, me dói, você viu! Você viu que eu tentei de modo bem desajeitado uns primeiros socorros. Eu tinha uma esperança enquanto você mexia os membros inferiores de que haveria possibilidade de reatar a vida, você lutou por ela! Quem diria, nem eu, nem você, que a vida findaria ali, no mais simples e nu do cotidia

Postal

Etiquetas não tenho nem nas roupas nem na mesa. Mas se eu pudesse minha vida seria uma encomenda rumo ao lado de lá com selos e carimbos de quem se encaminha de quem experimenta respirar novos ares novas crenças novas presenças. Etiquetas não tenho nem nas roupas nem na mesa. E às vezes, nem sinal a não ser dos pássaros a não ser dos gafanhotos a não ser das libélulas a não ser de Deus. e uma vontade de me endereçar ao espiral do mundo pra chegar a qualquer canto pra sentar em qualquer meio fio pra sentir aquelas saudades e voltar meia lua crescente pr'algum ninho. (Raquel Amarante)

Poemínimos

poefeminino Oscila na rima porque esse amor é de menina. poexagerado Amou errado deu-se todo. poemusicinternational Fui me buscar me achei nas canções que não sei cantar. Ando parado no sinal fechado poeansioso cheguei cedo à frente do medo. Estou errada quando estou certa de estar apaixonada. Estava apaixonada por sua saudosa imagem que agora foi pixada. Não sei se te limpo ou te deixo aí manchada. Cansada de sonhar foi ver telenovela ela era ela. Esta casa tem mais alicerces que eu. Teimosia Tomou algumas doses só não contava com uma lucidez que insistia. A gente finaliza muita coisa Mas não conclui nadinha. Tira a roupa que a roupa pesa e só quero a leveza do nosso amor. Tinha letra de pornô grafia amor pra dar em tempos de capital privado. Triângulo amoroso tenho a impressão que A3 é papelão. Não tem medo da morte porque não tem nem